Problemas de Cálculo, Dante, A Caverna, Ansiedade, O Mendigo, Eu, Vampiros, Rituais, Ansiedade Novamente!, Bunker, mijos, Mixomatose, CaBeça de vEnto, O Lobo em “Hail to the Thief”

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O Radiohead sem dúvida é uma das melhores bandas da contemporaneidade e como grandes bandas da história da música, suas temáticas ressoam o tempo que vivem, a realidade que os rodeia.

Em 2003, a treze anos atrás, a banda inglesa lançava Hail to the Thief um dos melhores, mais bem acabados, mas também mais obscuros de seus álbuns. No que tange a obscuridade, talvez HTF só perca para In Rainbowns ou The King of Limbs, sucessores do álbum lançado no começo da década passada.

Esse texto propõe fazer uma análise especulativa sobre essa obra, baseada nas interpretações subjetivas de seu autor e no conhecimento (talvez ainda raso) da banda de seu objeto, o Radiohead.

Hail to the Thief, algo como “saudação ao ladrão” é uma crítica ao processo eleitoral o qual deu a vitória a George W.Bush em 2000. Como o sistema eleitoral americano não é o objeto de nossa análise, basta dizer que o resultado foi controverso e acabou em vários protestos em oposição ao presidente estadunidense.

As canções, então como diz Yorke retratam “ o senso geral de ignorância, intolerância, pânico e estupidez” que seguiram essas eleições e a nova ascensão da direita no ocidente.
Diagnosticada a atmosfera por trás do álbum podemos agora delinear melhor as letras e o intuito desse trabalho, que na minha opinião parece ser o mais trabalhado de sua discografia.

2+2 = 5 (The Lukewarm)

A faixa inicial, intitulada 2+2 = 5 (The Lukewarm) inicia com o verso “Are you such a dreamer, to put the world to rights – I stay home forever, where two and two always make five”. “ Você é um sonhador, que pensa em endireitar o mundo – Eu ficarei em casa pra sempre, onde 2+2 sempre são cinco.”

É uma clara referência ao romance de Orwell, 1984 onde a polícia do pensamento coage os cidadãos a admitir que dois mais dois são cinco, assim a lógica não importa quando ninguém dá crédito a ela.

O subtítulo “Lukewarm” algo como o morno, complementa a resignação do eu-lírico, um cidadão morno contemporâneo que esconde em sua casa, onde a realidade assume a forma que ele almeja. Logo, o morno se acorvada e aceita sua realidade alienante.

A frase “Hail to the Thief” deixa mais nítido o contexto politico de uma democracia que se esfacela ante a improbidade de suas ações. O morno saúda o ladrão, pois sabe que o ladrão não deveria estar ali.

Sit Down, Stand Up (Snakes and Ladders).

Essa simples música, continua o tema da primeira onde Yorke repete um mantra de ordem “Sit Down, Stand Up” enquanto narra a “entrada nas mandíbulas do inferno” . Yorke diz que inspirou-se vagamente, na obra de Dante. O “morno” da primeira canção enfrenta o poder opressor de sua sociedade e essa opressão é explícita nos versos “We can wipe out you anytime” – “ Podemos subir com você a qualquer hora” cantadas numa voz saturada de efeitos eletrônicos, como um poder demoníaco sobre esse indivíduo impotente e resignado.

A estrutura da música evidencia toda a cena do personagem, já que o ritmo da música aumenta emquanto Yorke canta “The rain drops”, ou seja, o poder faz o que quiser com o “morno” e ninguém pode fazer nada a respeito.

O enigmático subtítulo “cobras e escadas” pareceu a esse humilde “brizador” que vos escreve muito ambíguo e amplo para engendrar em apenas um significado. Penso em como talvez (hipotéticamente) o eu-lírico encontra-se rodeado por cobras, numa alusão ao clima de grande competividade entre os indivíduos impulsionada pelo capitalismo e a paranóia decorrente desde estado, já que o próprio Yorke ressaltara que as canções tratem dessa sensação. Quanto as escadas, talvez seja a fuga tão procura pelo eu-lírico encarnado por Yorke.

Sail to the Moon (Brush the Cobwebs out of the Sky)

O que nos leva a Terceira canção, “navegar até a lua (Escovar as teias de aranha do céu). No primeiro verso há uma descrição de um sujeito que lamenta suas atitudes precipitadas e agora cai em profunda confusão. Porém no próximo verso ele fala sobre alguém “ maybe you’ll be president, but know right for wrong”. Versos assim tão obscuros assim ficam facéis (ou não) depois que sabemos que York compôs a canção para seu filho. Ele continua “Or in the flood, you’ll build a ark and sail us to the moon.” O eu-lírico preocupa-se com o future de seu filho, espera que ele consiga distinguir uma ética, mesmo que tenha que construir uma arca ou navegar até a lua.

Parece que, então a canção trata de alguém que se depara com a própria ansiedade e espera que o filho consiga lidar melhor com esse sentimento que assola o morno. Este só vê duas possibilidades de enfrentar esse mal, a arca aconchegante, um esconderijo com regras individuais fixas, baseadas num autoconhecimento ou uma transcendência mágica, representada pela navegação até a lua.

“Escovar as teias de aranha do céu”, parece ser a tarefa do filho e ao mesmo tempo, pode retratar a ansiedade do pai. Se a Aranha representar algo que tece os destinos, o filho pode escovar essas teias, representando a sua forma de distinguir o certo do errado.

Backdrifts (Honeymoon is Over)

“Recuadores” é a quarta faixa do álbum, uma das mais agressivas do álbum onde o eu-lírico xinga a si mesmo e a humanidade. “Um vento e nós vamos provavelmente esfarelar”.

Seguindo a linha de raciocínio e as entrevistas de Yorke, nos parece claro (ou não) que a canção ainda fala sobre a ansiedade e paranoia contemporânea, mas agora de maneira generalizada, que englobe não só o morno mas todas as pessoas com que ele se relaciona.
A segunda parte da música é muito obscura “Você caiu nos nossos braços, nós tentamos mas não tinha nada que podiámos fazer.” Sobre quem o eu-lírico se refere talvez nós não saibamos, mas a confusão do eu-lírico em tomar o rumo de sua vida fica bem evidente. Esse não-saber, confusão em saber o que fazer é o diagnóstico do fim da lua-de-mel, como explica o subtítulo.

Backdrifters é então uma canção sobre como o homem contemporâneo em sua apatia,ansiedade e paranoi regride, anda pra trás, ele recua.

Go to Sleep (Little Man Being Erased)

Essa canção começa descrevendo um homem esfarrapado que parece pedir coisas. Do que se trata esse homem¿, é o “morno” novamente ou é um marginal que é constantemente mal-tratado pelo sistema¿. Esse homem mal-tratado vai dormir e na segunda parte da canção versos como “nós não queremos acordar o monstro levando tudo, não queremos os loucos levando tudo” revelam um pânico frente ao status-quo, o monstro pode ser o poder, que leva tudo se abrirmos a boca e os loucos são aqueles que se desviam da norma, nós também não queremos que eles levem tudo, por isso vamos dormir.

Logo, o “pequeno homem sendo apagado” do subtítulo é o cidadão comum que vai dormir, o que o lava de sua escravidão e sua submissão aos monstros e a recusa dos loucos.

Where I Ends and You Begin (The Sky Is Falling)

O que nos leva a sexta canção do álbum, onde há um espaço entre o eu-lírico, onde ele termina e alguém começa. Nesse espaço o céu é verde e há dinossauros. Seria uma alusão a singularidade de cada indivíduo, de como cada corpo não pode ocupar o mesmo espaço ou como cada um é insubstituível. Então as percepções mudam nesse lugar, o céu muda de cor e até a temporalidade é outra, pois os dinossauros volta à terra.

Na segunda parte, ouvimos um eu-lírico que está nas nuvens, ele não pode descer, nem tomar parte dos acontecimentos, ele simplesmente observa onde o outro o deixou só.
O “X” é esse lugar de rompimento, de descolamento da relação do eu-lírico com o outro em questão. No verso “Eu o comerei todo vivo” parece ser uma apropriação do outro em si, como se o eu-lírico quisesse anular a existência do outro para que finalmente a relação dos dois continue e seja plena. Seria essa uma canção sobre um amor doentio?

We Suck Young Blood (Your Time is up.)

York descreveu a canção como uma sátira da cultura hollydiana de vampiros e zumbis, que não deve ser leveda à sério.

Frente a esses dados, talvez devêssemos parar por aqui, já que o próprio autor da canção nos diz que ela não deva ser levada à sério. Mas tratando-se de Radiohead, onde sempre as interpretações de suas canções é tão aberta e dado ao caráter dessa análise que sempre procurou ser especulativa, devemos nos arriscar a tirar algum sentido dessa canção satírica.

Para mim, a canção alinha-se a temática principal do álbum e a fala de Yorke talvez não deva ser levada tão a sério. É notória a utilização do arquétipo do vampiro para fazer referência ao capitalismo, que como um parasita, suga as potencialidades da vida humana. Talvez o vampiro seja essa mal á espreita que suga o “tutano” jovem e fresco das pessoas, tira os sonhos de suas vítimas, que acabam ficando resignadas. O resultado é a morte em vida, os zumbis e o inevitável niilismo.

The Gloaming (Softly Open our Mouths in the Cold.)

O “crepúsculo” continua com a atmosfera que faz referências ao terror, onde o eu-lírico executa um ritual e para que serve esse ritual¿. “Gênio, saia da lâmpada… “ (…) “ Assassinos, vocês são todos assassinos”

Sobre a canção Yorke disse que pensou na ascensão do fascismo, da intolerância e do medo na sociedade contemporânea” algo que entra no tom geral do álbum.

Mas seria o ritual uma vingança contra o totalitarismo?, uma esperança depositada num mal tão terrível que iria purgar nossos algozes? Para mim, acho que essa é uma interpretação válida, pois os próximos versos “nós não somos como vocês” indica um objeto de ódio.

“Quando os muros encurvarem, com os seus suspiros, eles o chuparão para o outro lado”. “Quando as sombras azuis e vermelhas, seu alarme toca.” Essas linhas porém, indicam que alguém irá se perder (ser sugado) ao som do alarme. Seria ele o nosso demônio, o mal que nos inflige, ou o indivíduo frágil que faz o ritual?. Na minha interpretação, ao som do alarme, o nosso mal seria expurgado, mas o alarme não toca e o feitiço falha.

There,There (The Boney King of Nowhere)/ I Will (No man’s Land)/ A Punchup at a Wedding (No no no no no no no no.)

O próximo segmento de três canções repetem as temáticas das primeiras oito canções do álbum. There, There é mais uma canção sobre paranoia, medo e ansiedade, “só porque você sente não quer dizer que está lá” resume essa canção, a de mais fácil digestão do álbum. A que a segue I Will (No man’s Land),“Eu Vou” parece ser o exato oposto de There,There  onde o eu-lírico diz que vai se colocar num deposito subterrâneo e não deixará os filhos conhecerem o mundo real. É uma canção que segue o estado de ânimo do eu-lírico por todo álbum, parecendo ser a irmã de Sail to the Moon mais sendo mais sombria e desesperançosa que esta e A Punchup at a Wedding (No no no no no no no no.)  repete a temática matrimonial de Backdrifters .Yorke diz que é a sua reação frente aos eventos mundiais. Parece que algo ou alguém estraga os planos do eu-lírico ou o impede de viver algo sublime, simbolizando um soco num casamento.

Myxomatosis (Judge, Jury and Executioner)

Mixomatose é doença que geralmente se incide sobre coelhos, onde os pobres animais são acometidos por tumores que soltam secreções purulentas. Essa pequena fábula-sinistra sobre um gato que gaba-se de viver uma boa e acaba acometido essa doença terrível.
Mesmo que o gato tenha feito o que queria, ele se sente perdido e quando escreve sobre isso – afinal trata-se de um gato poeta – é mal interpretado pelo público.

Essa parece ser uma fábula filosófica, tal como a caverna de Platão, um sábio traz as boas novas de uma vida livre para os seus, mas esses não compreendem. O sábio então entra em confusão mental, acho em alguns momentos que seus pensamentos são ingênuos. Ele acaba sendo acometido pela mesma doença de seus pares.

Scatterbrain. (As Dead as Leaves.)/ A Wolf at the Door (It Girl.Rag Doll)

Para fechar o álbum temos, Scatterbrain e A Wolf at the Door que trazem os temas de alienação e paranoia.  A “pessoa distraída” é o nome da primeira e como outras canções do álbum falam do invíduo ansioso e impotente frente ao sistema. Ressalta-se o seguinte verso “As manchetes de ontem destruídas pela ventania, as pessoas de ontem viraram cabeças de vento.” Os cabeça-de-vento, pessoas distraídas, imersos numa confusão mental, impotentes. A segunda não destoa do tem geral do álbum, “Um lobo na porta” complementa os temas de fábula e terror das canções We Suck Young BloodThe Gloaming e parece uma junção de todas as canções do álbum onde o eu-lírico é constantemente humilhado por esse lobo, que simplesmente abusa de seu poder como quer.

Hail to the Thief é um álbum complexo, porém coeso em sua temática. Essa por sinal não destoa do que a banda vinha abordando desde Ok Computer (1997) que é um eu-lírico paranoico, depressivo, niilista, conformado e resignado frente ao sistema ou até mesmo em suas relações. Não é toa que para mim a banda inglesa acaba sendo um dos artistas que mais expressam o “espírito” de nosso tempo, a hipermodernidade (modernidade líquida, pós-modernidade,etc…) e como o indivíduo acaba sentindo-se alienado de sua realidade, tendo apenas um único sentimento intenso: a ansiedade.

A demais HTF é o mais explicitamente político álbum lançado pela banda e também o mais conciso musicalmente, pois há uma junção da experimentação eletrônica de Kid A com as guitarras de Pablo Honey e The Bends.

“Eu ficarei em casa para sempre, onde 2+2 é sempre 5”.

2 comentários sobre “Problemas de Cálculo, Dante, A Caverna, Ansiedade, O Mendigo, Eu, Vampiros, Rituais, Ansiedade Novamente!, Bunker, mijos, Mixomatose, CaBeça de vEnto, O Lobo em “Hail to the Thief”

  1. Opa cara… interessante a sua análise a partir de uma perspectiva mais da análise da poética do álbum. Curioso observar como você constata sempre uma certa incerteza, ansiedade, dúvida e uma pendularidade de pequenas contradições nas letras. Eu avalio que isso se deva a uma característica psicológica do próprio Thomas – ele é libriano, como você sabe – e quando estudamos o perfil psicológico zodiacal dos librianos, fazemos essas mesmas constatações que fizeste.

    Quanto à temática geral, quando você alude à convergência entre o “geist” da banda e o do nosso tempo, particularizando ainda essa temporalidade em “hipermodernidade (modernidade líquida, pós-modernidade,etc…)”, eu também concordo, muito embora aqui eu atualmente tenha começado a abrir um dissenso epistemológico e filosófico que deverá impactar a posteriori a forma como eu vou escutar o Radiohead, e tentarei me explicar melhor.

    Tenho me perfilado às atuais observações que falam sobre a obsolescência da temporalidade como uma medida para o presente, ao ponto que, não só a hipermodernidade, modernidade líquida, pós-modernidade já estão obsoletas, como a própria contemporaneidade já se gastou. Vivemos num limbo entre o ontem redundante e portando descartado, e um porvir indefinido que só ainda não foi realmente caracterizado por falta de suporte teórico preciso para tal, o que nos levaria no caso que conversamos a um paradoxo, qual seja: o Radiohead é a banda que “mais expressa o ‘espírito’ do nosso tempo”, sendo que ao mesmo tempo, tudo isso já está obsoleto e mesmo o que o Radiohead expressa.

    Discordaria apenas de quando você diz que o HTTT é tão sombrio quanto o In Rainbows e o King of Limbs, e claro que aqui ficamos num ambiente meio escorregadio de como as obras se completam diferentemente em casa ouvinte, mas existem inúmeros indícios a partir das entrevistas deles e mesmo da análise das obras que me levam a crer que tanto o In Rainbows como o KOL são álbuns particularmente “felizes” na discografia da banda. E digo, não só felicidade pelos álbuns serem bons, mas de fato, abordarem perspectivas menos pessimistas em relação ao mundo e a eles próprios. Ademais, foi um período de bastante auto realização para a banda toda, isso fica evidente numa reportagem/entrevista que eles concederam à Rolling Stone quando do lançamento do In Rainbows. Seu eu pudesse opinar, diria que Amnesiac é por exemplo, um álbum muito mais sombrio que o HTTT e os outros, apesar de guardar pouca similitude com o álbum que você resenhou.

    Enfim…
    Devaneios meus, apenas.

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  2. Olá, Augusto, primeiramente muito obrigado por ter prestigiado o meu texto.

    Sobre sua consideração sobre a obsolência da temporalidade, concordo com vc que vivemos num limbo de temporalidade contínua. Mas não diria que então o trabalho do Radiohead tenha ficado obsoleto, pois o uso dessa palavra já pressupõe uma temporalidade, eu diria o trabalho da banda expressa um condição humana, de limbo como vc mesmo mencionou, uma experiência de falta de “geist” que acaba sendo o “geist”, que também acaba num paradoxo, mas veja, acho que o trabalho da banda justamente é a apreensão desse paradoxo, que é o “geist” sem “geist”.
    É claro que também podemos pensar que todo esse trabalho é simplesmente a expressão subjetiva da condição de Yorke, mas eu acho que por mais que Yorke fale de seus problemas cotidianos, inconscientemente, fala dos problemas de nossa “época” sem “geist”. Acho que até a produção musical industrial acaba deixando transparecer isso, na sua nostalgia por outras épocas e isso é meio sintomático, na minha maneira de ver.
    Sobre o caráter sombrio de In Rainbowns e The King of Limbs, não quis dizer que eram mais pessimistas que Hail to the Thief, mas sim que são mais difíceis de interpretação. Eles não tem uma temática tão fechada como HTTF, mas concordo com vc no sentido de que esses dois álbuns são mais otimistas que HTTF.

    Espero que tenha esclarecido alguma coisa, mas qualquer coisa é só enviar uma mensagem.
    Abraços e obrigado

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